quinta-feira, 27 de setembro de 2012

SAGA DE XAM: de escândalo visual a livro mítico


Há livros assim. Obras muito citadas mas poucas vezes vistas. Títulos que pela sua importância e raridade adquiriram uma aura quase mítica. Saga de Xam, uma Banda Desenhada de Nicolas Devil editada por Eric Losfeld em 1967, nas suas Editions du Terrain Vague e nunca depois reeditada, é um desses livros míticos. Um livro que aqui se dá a descobrir aos leitores da Bang!
Responsável pela chegada às livrarias francesas de uma Banda Desenhada destinada a um público adulto, que misturava erotismo e ficção científica, Losfeld estreia-se na edição de BD em 1964 com a Barbarella de Jean-Claude Forrest, um jovem autor então praticamente desconhecido, que criou uma série de ficção científica protagonizada por uma mulher bela e sexualmente independente, muito diferente da maioria das mulheres da BD até então, que se limitavam a um papel passivo de namoradas dos heróis, à espera de serem salvas (basta pensar em Dale Arden, a companheira de Flash Gordon, de Alex Raymond, para continuarmos no campo da ficção científica). Essa opção de dar o protagonismo às mulheres está igualmente presente noutros títulos editados por Losfeld, como Jodelle e Pravda, de Guy Peellaert, Scarlet Dream de Lob e Gigi e Epoxy de Van Hamme e Paul Cuvelier, todos protagonizados por mulheres tão belas como independentes.

Apesar de se enquadrar perfeitamente na estratégia editorial de Losfeld, de misturar o erotismo e a ficção científica na BD, Saga de Xam é uma obra à parte, com características únicas e irrepetíveis, fruto de uma época e do encontro ocasional de um grupo de criadores que seguiram caminhos diferentes.
Para além do editor, Eric Losfeld, outro nome foi determinante para a concretização de Saga de Xam. O de Jean Rollin, cineasta de culto com uma grande atracção pelo fantástico e pelo erotismo, que escreveu o argumento de Saga de Xam e apresentou Devil a Losfeld. Rollin era amigo de Devil e frequentador habitual do seu apartamento, onde costumava parar também o desenhador Philippe Druillet, o criador de Lone Sloane (que também vai ser editado por Losfeld), que vai colaborar no desenho de Saga de Xam, participando num cadavre exquis no último capítulo. Tanto Nicolas Devil e a sua mulher, como Druillet vão participar como actores em alguns dos filmes de Rollin, como Le Viol du Vampire, cujo cartaz é da autoria de Druillet.

Mas deixemos que seja o próprio Losfeld, a contar na sua autobiografia , como decidiu publicar aquele que foi “um dos mais belos livros” que editou em toda a sua carreira: “[Jean Rollin] O futuro cineasta dos amores vampíricos disse-me: «vou apresentar-te um desenhador que me parece ter muito talento» - e apresentou-me o Nicolas Devil. Nicolas Devil, que na altura era muito jovem, uma vintena de anos, trouxe-me alguns desenhos e passou-me a sinopse do argumento escrito por Jean Rollin. Resta acrescentar que, ao longo da sua feitura, o livro evoluiu grandemente até se tornar uma espécie de patchwork delirante: um período egípcio, um período chinês, um período viking, um período psicadélico e, no final um levantar voo para fora deste mundo, que deu certamente origem ao mais espantoso poster que se podia imaginar a partir deste tipo de desenho.”

Considerado pelo crítico Jacques Marny como um verdadeiro “escândalo visual” , definição que traduz bem o impacto que o livro teve nos leitores da época, Saga de Xam começou como uma Banda Desenhada de ficção científica, que conta a viagem de Saga, a bela jovem de pele azul vinda do Planeta Xam para salvar um planeta Terra, que não merece ser salvo, mas foi evoluindo, de forma orgânica, para se transformar num manifesto coectivo, estético e político, que prenuncia o Maio de 68 e onde encontramos como figurantes no último capítulo Barbarella, Bob Dylan, Allan Gingsberg, Zappa Kalfon, Julian Beck, Lovecraft, Valérie Lagrange, John Lennon, Cassius Clay, os Hell's Angels e os Rolling Stones, entre muitos outros.
Para além de uma verdadeira viagem pela História de Arte Universal, do antigo Egipto à Pop Art, passando pela pintura flamenga tornada possível pelo talento e versatilidade do traço de Devil e dos seus colaboradores, Saga de Xam é um belo e luxuoso livro-objecto, encadernado a pano e impresso em papel de 300 gr, feito mais para ser visto do que para ser lido. Com efeito, apesar de impresso em grande formato (24x31cm) as pranchas estão ainda assim bastante reduzidas em relação aos originais de Devil, o que implica o uso de uma lupa (que era oferecida com o livro) para conseguir ler o texto de algumas páginas, para além de outras estarem escritas num código cuja chave estava no fim do livro, o que torna a sua leitura um exercício trabalhoso e até penoso…

Apesar de não ser de leitura fácil, ou talvez mesmo por isso, a crítica francesa recebeu Saga de Xam de forma entusiástica, como podemos ver por esta recensão ditirambica publicada à época no Magazine Litteraire, que, como podemos ver, não hesita em comparar Devil a Homero, não se ficando por aí… : "Saga é a heroína cujo nome significa História, mas uma História divinizada e legendária como a História da cólera de Aquiles, que se chama Ilíada. Saga, história e heroína, saltam de época em época: o reino do fanatismo religioso, o tempo dos faraós, a pré-história, o futuro absoluto, para converter-se num poema puro, descritivo e sumptuoso. Tenho a certeza que Saga de Xam assinala um marco, uma viragem na história da Banda Desenhada. Com Devil, a BD encontrou o seu Homero, e na Saga de Xam a sua Ilíada. O fantástico de Redon, a sumptuosidade de Velasquez, a graça e o ritmo dos corpos de Picasso, os horrores de Bosch e de Goya, são os pais poéticos do desenho de Devil...”

Embora de forma mais discreta, o impacto do livro também chegou a Portugal, onde a sua influência se fez sentir. Nelson Dias, o desenhador de Wanya – Escala em Orongo, a primeira Banda Desenhada moderna de Ficção Científica nacional, publicada em 1973, é o primeiro a reconhecer essa influência, numa entrevista a Vasco Granja, em que diz: “Saga de Xam, de Nicolas Devil representou muito para mim, estimulando-me bastante no sentido da criação gráfica” e essa influência é bem evidente em Wanya, uma heroína que caberia perfeitamente no catálogo de Losfeld. Apesar do sucesso do livro, que rapidamente esgotou a primeira e única edição, mesmo a um preço de 1000 francos por exemplar, os seus autores acabaram por seguir caminhos diferentes. Jean Rollin, falecido em finais de 2010, dedicou-se de corpo e alma ao seu principal interesse, o cinema, sem grande sucesso comercial, o que levou a alternar o cinema fantástico de “amores vampíricos” com a realização de filmes pornográficos, que lhe permitiam pagar as contas.

Druillet, ainda activo como ilustrador e autor de BD, desiludido com a abordagem elitista de Losfeld, que apostava em edições de luxo e baixas tiragens em vez de fazer chegar os livros a um público mais vasto, decidiu levar as suas criações para a revista Pilote, onde conhece Jean Moebius Giraud, com quem irá fundar, anos mais tarde, a editora Humanoides Associés, responsável pela publicação da mítica revista Metal Hurlant, título que irá revolucionar a Banda Desenhada de ficção científica.
Quanto a Nicolas Devil, depois de Saga de Xam, apenas publicou mais um livro com desenhos (de acordo com Losfeld, Devil mais do que desenhador, queria é ser escritor e terá mesmo publicado alguns livros com Andrè Bercoff, e Paule Salomon, como Tout, le Livre des Possibilités, de 1975 e Nu, le Livre des Possibilités, de 1977), Orejona - Saga Génération, de 1974. Mais do que propriamente BD, Orejona é um livro ilustrado e caligrafado, que recupera os slogans, logotipos e grafismos da contra-cultura europeia e norte-americana, dos textos do Black Power ao Manifesto Situacionista, ilustrado com desenhos de Devil e de desenhadores underground, como Richard Corben, Vaughn Bodé, Roman Cieslewicz e Robert Crumb.
Desaparecido da cena artística desde então, Devil recuperou o seu verdadeiro nome (Nicholas Deville) emigrou para o Canadá, onde tirou um Doutoramento em Filosofia e actualmente vive no Quebéc, onde é professor de Filosofia numa Universidade em Matane, uma pequena cidade na margem sul do rio São Lourenço, tendo, ao que parece, deixado completamente o desenho.
Verdadeiro objecto de colecionador, Saga de Xam continua a ser muito procurado, mais de 40 anos depois da sua publicação original, atingindo preços proibitivos nos leilões na Internet. Algo que se deve a decisão de Losfeld que, apesar do seu incontestável sucesso, optou por nunca reimprimir Saga de Xam, por achar “que é bom que, por vezes, alguns livros se tornem míticos”. No caso de Saga de Xam, não há dúvidas de que o conseguiu.

Texto originalmente publicado no nº da revista Bang!, de Agosto de 2012
NOTA- Este texto é dedicado ao Pedro Piedade Marques, que me desafiou a escrevê-lo e me emprestou a autobiografia do Eric Losfeld e ao André Caetano, que digitalizou as imagens de Nicolas Devil, demasiado grandiosas para a modéstia do meu pobre scanner.

6 comentários:

André Azevedo disse...

Caro João Miguel Lameiras,

Grande investigação.

Do Nicolas Devil, com o André Bercoff e a Paule Salomon, foi publicado Tout, le livre des possibilités, em 1975 e Nu, le livre des possibilités, em 1977.

JML disse...

Caro André,
Obrigado pela informação, que já acrescentei ao texto!
O Nicolas Devil e a Saga de Xam são um bom exemplo de que nem toda a informação está disponível na Internet...

André Azevedo disse...

Sim, ainda há muita BD "obscura" por esse mundo fora, e mesmo editada em Portugal, da qual não se encontra informação na Internet

Geraldes Lino disse...

Eu sou um sortudo, devo confessar: tenho um exemplar dessa raridade, comprada na época da edição cá em Lisboa.

JML disse...

Olá Lino. Já somos dois! Embora o meu exemplar tenha sido comprado bem mais de vinte anos depois num alfarrabista em Angoulême. Na altura em que o Saga de Xam saiu, eu tinha menos de um ano de vida e as minhas preocupações ainda não passavam pela BD...

Frigo disse...

Tambem tenho a minha edicao. Comprei usada claro mas esta muito bem conservada pela idade.