quinta-feira, 7 de março de 2013

Evocando Comés (1942-2013)


Como os visitante mais regulares deste espaço terão reparado, nos últimos tempos têm sido poucas as actualizações neste blog. Mas, apesar da falta de tempo para um texto mais desenvolvido, não quis deixar de evocar a memória de Didier Comés, desaparecido hoje, aos 71 anos, vencido pela doença que já há alguns anos o impedia de desenhar. CAdmirador confesso de Hugo Pratt, Comés foi mestre do preto e branco e um dos grandes nomes da revista (A Suivre) onde saíram os seus títulos mais importantes, incluindo o magnífico "Silêncio", que foi uma das leituras mais marcantes da minha adolescência, graças a uma edição da Bertrand. Mais tarde, a Asa reeditou "Silêncio", a cores e em dois volumes. É o texto que escrevi sobre essa edição, há mais de 10 anos, que hoje aqui recupero, prestando assim a minha modesta homenagem a Comés (que na foto acima, tirada no último Festival de Angoulême, aparece ao lado de outro mestre do preto e branco, o argentino José Muñoz, naquela que foi a sua última aparição pública) e ao seu livro mais marcante.

UM IRREPETÍVEL SILÊNCIO

Se há obras que marcaram toda um geração de leitores, “Silêncio” é indiscutivelmente uma delas. Publicada inicialmente em 1979 na revista (A Suivre), este “Roman BD” de Didier Comés, seria publicado em álbum em Portugal, alguns anos depois, através da Bertrand que, num mercado onde os álbuns de 48 páginas a cores ditavam a lei e o virtuosismo do preto e branco de Hugo Pratt ainda não convencia totalmente os leitores da revista “Tintin”, arriscou publicar uma história a preto e branco com mais de uma centena de páginas, assinada por um autor praticamente desconhecido.

Mas este “Silêncio” merecia o risco, graças a uma história sensível e de uma terna melancolia, sobre um jovem mudo e deficiente mental cuja inocência choca com a intriga e a perversidade da aldeia perdida da França profunda em que vive. Através de uma descrição desencantada da França rural, em que a ignorância e obscurantismo se misturam com a magia e a superstição, Comés criou uma intriga inesquecível, em que os traumas da perda da inocência se misturam com os prazeres da descoberta do amor, servida por um grafismo de poderoso contraste em que as sombras da obra do seu mestre Hugo Pratt eram bem evidentes, até no melancólico final em que os dois amantes mortos entram pelo mar adentro, rodeados por gaivotas que podiam ter saído de uma página do autor de Corto Maltese.

Depois de “Silêncio”, a obra de Comés continuou a ser divulgada em Portugal de forma regular, pela Meribérica, através de uma série de livros, como “A Árvore-Coração” e “A Casa onde as Árvores Sonham”, em que o autor belga, fiel às suas obsessões (os ambientes rurais, as religiões primitivas, a magia telúrica, ligada ao culto da natureza e aos rituais de fertilidade) procurou em vão repetir a magia de “Silêncio” sem nunca o lograr totalmente. “As Lágrimas do Tigre”, o mais recente título de Comès, que a Asa acaba de lançar em português neste início de 2003, é um bom exemplo. Apesar da notável técnica de preto e branco de Comès, da elegância de um traço cada vez mais seguro e apurado e do rigor da planificação, falta a esta adaptação de uma lenda índia, aquela magia única e irrepetível que encontramos em “Silêncio”. Uma magia que toda uma nova geração de leitores poderá descobrir através da reedição colorida em dois volumes, com que a Asa assinala a entrada no seu catálogo cada vez mais forte.

Esta moda de reeditar alguns clássicos da BD a preto e branco, em novas versões coloridas e divididas em vários volumes, parece ter pegado nas Edições Casterman, que assim rentabilizam um valioso fundo de catálogo que inclui algumas obras-primas da BD franco-belga dos anos 80, como este “Silêncio”, ou “O Grande Poder de Chninkell”, de Rosinski e Van Hamme, que a Meribérica está também a publicar numa nova versão colorida. Uma opção comercial válida, mas que não deixa de ter os seus detractores, para quem estas reedições coloridas não passam de uma forma descarada de vender duas vezes o mesmo produto.


E a verdade é que, mesmo que as novas cores, bastante suaves, não choquem muito, ao ver um clássico destes adulterado, para quem conhece a versão original, fica sempre um sentimento purista de frustração, semelhante ao que terá um cinéfilo perante a versão colorida de um filme como “Casablanca”.
 No fundo, é o mesmo problema colocado pelas reedições a cores dos trabalhos de Hugo Pratt que, não convencendo completamente os adeptos do excelente jogo de sombras de Pratt, tem no entanto o grande mérito de atrair novos leitores, para quem a cor é um elemento imprescindível da BD.
 Mas, a cores ou a preto e branco, o importante é que o livro está novamente disponível em Portugal, de modo a que mais leitores possam descobrir finalmente o encanto (até agora irrepetível) de “Silêncio”.


Texto originalmente publicado no Diário As Beiras de 22/02/2003

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