sexta-feira, 9 de agosto de 2013

DC Comics UNCUT 5: Joker: O Último a Rir


No caso da introdução ao volume do Joker, também da minha autoria, as alterações em relação à versão inicial, têm a ver com a questão da criação do Batman, que oficialmente só foi criado por Bob Kane, e com uma referência ao litígio de Alan Moore com a DC na sequência de Watchmen. Ou seja, pouca coisa, quando comparado com outros textos... Curiosamente, esta versão publicada nem é mais politicamente correcta, pois cheguei a escrever uma terceira versão, mas que não chegou a ser mandada para a DC, porque não foi preciso, uma vez que esta segunda acabou por ser aprovada sem quaisquer cortes.

O HOMEM QUE RI


JÁ DIZIA HITCHOCK QUE O SUCESSO DE UM FILME DEPENDIA, E MUITO, DO CARISMA DO VILÃO. E NA BEM RECHEADA GALERIA DE INIMIGOS DE BATMAN, NÃO HÁ VILÃO MAIS CARISMÁTICO DO QUE O JOKER. O IMPREVISÍVEL ARLEQUIM TEM SIDO O PRINCIPAL ANTAGONISTA DO BATMAN AO LONGO DE MAIS DE SETENTA ANOS, MAS NAS DUAS HISTÓRIAS QUE COMPÕEM ESTE VOLUME, O PROTAGONISMO VAI TODO PARA O JOKER, QUE SE ASSUME AQUI COMO A PERSONAGEM PRINCIPAL, ECLIPSANDO O CAVALEIRO DAS TREVAS COM O BRILHO DA SUA LOUCURA.

Criado por Bob Kane, Jerry Robinson e Bill Finger em 1940, o Joker foi o antagonista do Batman na primeira aventura na sua própria revista, Batman # 1, título que surgiu na sequência do sucesso das aparições do Cavaleiro das Trevas na revista Detective Comics, a partir do hoje mítico nº 27. Embora os relatos divirjam quanto à importância de cada um dos autores na criação do personagem, com Bob Kane e Jerry Robinson a disputarem entre si o mérito da criação da imagem do Joker, ambos reconhecem a importância de Bill Finger como argumentista e o contributo decisivo de uma fotografia do actor Corand Veidt no filme The Man Who Laughs, de 1928, baseado no romance homónico de Victor Hugo, para o sorriso rasgado que torna o Joker imediatamente reconhecível.
Presença constante nas aventuras de Batman ao longo de décadas, o Joker chegou a ter direito à sua própria série, em meados dos anos 70. Uma série que durou apenas nove números e na qual defrontou os mais variados adversários, incluindo... Sherlock Holmes. Foi também durante a década de 70 que o Joker voltou às origens em termos de comportamento, deixando de ser apenas um comic relief para se transformar num personagem ameaçador e mortífero, nas histórias de Denny O’Neil e Neal Adams que depois dos delírios kitsch dos anos 50 e 60, trouxeram o Batman e os seus adversários para um caminho mais realista, que possibilitou histórias como as assinadas por Frank Miller na década de 80, ou A Piada Mortal, a novela gráfica de Alan Moore e Brian Bolland que abre este volume, dedicado não a um herói, mas ao principal vilão do Universo DC.

Última história escrita por Alan Moore para a DC, em 1988, pouco antes de cortar relações com a editora devido a divergências sobre os royalties de Watchmen, A Piada Mortal é descrita por Moore, como “apenas uma história de Batman”, mas tanto o desenhador, Brian Bolland, como os leitores, sabem que não é bem assim. A Piada Mortal é uma das mais importantes histórias de Batman de sempre, até pelas consequências que teve na vida de Barbara Gordon, que uma bala do Joker deixa paralisada numa cadeira de rodas, pondo fim à sua carreira como Batgirl, durante mais de 20 anos. Situação que só se alterou em 2011, quando na sequência do relançar das principais revistas da DC, no âmbito da iniciativa conhecida como “Novos 52”, Barbara voltou a andar e pode voltar a vestir a fato de Batgirl.
Exemplo perfeito da articulação harmoniosa entre texto e imagem, com Bolland, que agora se dedica sobretudo à ilustração de capas, a brilhar a grande altura no seu último trabalho de grande folego como desenhador, A Piada Mortal explora a relação entre Batman e o Joker e a forma como funcionam como reflexo um do outro, dando-nos a conhecer os acontecimentos que levaram o Joker à loucura.
Numa sequência de flahbacks magistralmente executados, Moore dá-nos a sua versão da origem do Joker, apresentado como um comediante falhado que se envolve com um grupo de criminosos para ganhar dinheiro que lhe permitam sustentar a mulher e o filho prestes a nascer e que perde a sanidade, na sequência de um dia que lhe corre extremamente mal. Um dia que o deixa viúvo, sem filho e deformado. Um passado trágico que justificaria a sua actuação, mas que o próprio Joker não sabe se é real, pois, como o próprio refere: "as minhas memórias nem sempre são as mesmas... Já que tenho que ter um passado, que seja de escolha múltipla!"
Embora Brian Bolland, por falta de tempo, não tenha podido na altura colorir a história, como pretendia, tendo esse trabalho ficado a cargo de John Higgins, que já tinha colaborado com Moore em Watchmen, em 2008, por ocasião do 20º aniversário da publicação de The Killing Joke, o livro foi reeditado numa edição de luxo, como novas cores digitais de Bolland, mais próximas da sua intenção original e que o leitor português pode apreciar pela primeira vez, pois a anterior edição portuguesa da Devir utilizava as cores originais de John Higgins.
Separadas por mais de 20 anos, as duas histórias que compõem este volume, têm em comum o facto de atribuírem o principal protagonismo ao Joker, que surge sorridente e destacado em ambas as capas. Capas essas em que Batman prima pela ausência. Mas a principal diferença entre a Piada Mortal e Joker, é uma diferença de ponto de vista do narrador. Enquanto Moore nos dava a conhecer as recordações do Joker, o que nos permitia perceber as suas motivações, em Joker, Azzarello opta por ter como narrador um pequeno criminoso, Jonny Frost, que vai servir como motorista do alucinado vilão, transmitindo por isso ao leitor uma perspectiva externa.
Depois da mini-série Broken City, publicada em Portugal pela Devir com o título Batman: Cidade Destroçada, Joker assinala o regresso de Azzarello a Gotham City e ao universo do Batman. Um universo onde, curiosamente, se aventurou pela primeira vez ao lado de Bermejo, na mini-série Batman/Deathblow: after the Fire, que juntava o Cavaleiro das Trevas ao mercenário criado por Jim Lee e Brandon Choi. Desta vez, Batman está muito menos presente (embora a sua sombra paire por todo o livro) mas mantém-se a aproximação realista, mais próxima do film noir do que das histórias de super-heróis, que faz do Croc não um mutante com genes de crocodilo, mas apenas um brutamontes com um sério problema de pele. Do mesmo modo, Harley Quinn a companheira do Joker que tinha surgido inicialmente na série de animação do Batman, num episódio escrito por Paul Dini e Bruce Timm, surge aqui numa versão muito realista e sensual, mesmo que, coisa rara numa personagem de Azzarello, que trabalha os diálogos como poucos autores, não a ouçamos dizer uma palavra… Também o Enigma nos aparece modernizado, trocando o uniforme de licra por um vestuário bastante mais urbano. O próprio Joker, acabado de sair do Asilo Arkham, comporta-se mais como um Senhor do Crime que pretende recuperar o seu território, do que como um simples louco, sem um objectivo lógico perceptível. O que não impede que a sua loucura se manifeste de forma assustadoramente inesquecível, sobretudo na violência exacerbada, que Bermejo traduz em imagens hiper-realistas capazes de perturbar os estômagos mais sensíveis.  
Talvez por o livro ter saído muito próximo da estreia de The Dark Knight, o segundo filme da trilogia cinematográfica que Cristopher Nolan dedicou ao Homem Morcego, houve quem visse no Joker de Azzarello e Bermejo, uma versão em papel do Joker magistralmente interpretado por Heath Ledger no cinema, mas as semelhanças entre o livro e o filme são apenas coincidência, pois Azzarello escreveu a história em 1986, dois anos antes do filme estrear, sem ter tido acesso ao argumento, o que não impede que um desenho que Bermejo fez para o site Batman on Film, em 2006, quando começou a trabalhar no livro, possa ter servido de inspiração aos responsáveis pela concepção visual do filme de Nolan.
  Se Azzarello constrói com grande eficácia uma história extremamente violenta de luta pelo poder, o maior responsável pela visão perturbadora que esta história transmite ao leitor é Lee Bermejo. O desenhador passou quase dois anos a desenhar as mais de cem páginas desta história, mas o resultado valeu a pena, mesmo que em alguns casos seja evidente o uso de referências fotográficas, como numa imagem em que o Joker aparece em contrapicado a apontar um revolver que apresenta grandes semelhanças com um dos mais emblemáticos planos do filme brasileiro Cidade de Deus.
 Alternando na mesma páginas imagens desenhadas a traço, com ilustrações em cor directa, Bermejo, contando com a arte-final de Mick Gray consegue imagens espectaculares, de um realismo perturbador, acentuado pelas cores sombrias de Patrícia Mulvihill, que já tinha sido a colorista de 100 Bullets. E, num livro cheio de pormenores, que justificam sucessivas leituras, não falta mesmo uma homenagem à Piada Mortal, na cena no restaurante italiano, em que o Joker a comer camarões numa mesa rodeado de bandidos, nos remete para uma cena idêntica num dos flash backs da Piada Mortal, só com a grande diferença que, em vez de um jovem inseguro, pressionado por um grupo de criminosos a participar no assalto que vai mudar a sua vida, desta vez é o Joker quem comanda o jogo.    

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