quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Recordando Barefoot Gen, nos 70 anos de Hiroshima


O facto de hoje se cumprirem 70 anos sobre o bombardeamento americano a Hiroshima, onde pela primeira vez foi utilizada um bomba atómica, com os efeitos que se conhecem, pareceu-me o pretexto ideal para recuperar neste espaço um texto que escrevi em 1997 para o fanzine Nemo, publicação superiormente dirigida por Manuel Caldas, onde me estreei a escrever sobre BD em 1993, já lá vão mais de 20 anos! Esse texto é sobre Barefoot Gen, um manga autobiográfico de Keiji Nakasawa, um sobrevivente de Hiroshima, que passou as suas memórias para o papel. Deixo-vos com esse texto.

DESCALÇO EM HIROSHIMA

Um dos muitos méritos de Maus de Art Spiegelman, é o de demonstrar a capacidade da BD para transmitir com eficácia todo o horror e o absurdo de situações limite da história da humanidade, como foi o caso do Holocausto. Mas, antes de Maus, já uma BD japonesa (cuja influência no seu trabalho, o próprio Art Spiegelman reconhece de forma implícita) tinha revelado essa mesma capacidade de descrever o indescritível e representar o irrepresentável, ao captar de forma notável o drama das vítimas do bombardeamento nuclear que arrasou Hiroshima. Barefoot Gen (Hadashi no Gen no original) de Keiji Nakazawa é essa obra pioneira.
Publicado entre 1972 e 1973 nas páginas da revista SHUKAN SHONEN JAMPU, a mais popular revista semanal japonesa, com uma tiragem superior a dois milhões de exemplares, Barefoot Gen foi o primeiro manga a chegar ao Ocidente, graças ao esforço de um grupo de jovens de Tóquio, que incluía vários não japoneses, entre os quais o americano Fredrik Schodt (um dos maiores especialistas mundiais em BD japonesa), que considerou a mensagem da obra de Nakazawa demasiado importante para que o Ocidente a pudesse continuar a desconhecer. Nascia assim em 1976 o Project Gen, organização não lucrativa e constituída exclusivamente por voluntários, que procedeu à tradução da série, conseguindo a sua edição integral em quatro volumes nos EUA e em Inglaterra, para além da tradução do primeiro volume em francês, alemão, esperanto, norueguês e sueco. Distribuído essencialmente no circuito de livrarias, Barefoot Gen acabou por passar praticamente despercebido à maioria dos leitores de comics, que só descobririam os manga anos mais tarde, graças à publicação em meados de 80, pela First Comics, de Lone Wolf and Cub (Kozure Okami no original), de Kojima e Koike, uma das séries favoritas de Frank Miller, que assegurou as capas e a introdução dos doze primeiros números.
É caso para se dizer que esses leitores menos atentos não sabem o que perderam, pois se, conforme referiu Domingos Isabelinho, alma é "o lugar de reencontro com o vivido, as cicatrizes deixadas em nós pela realidade", não há dúvida que Barefoot Gen "tem alma até Almeida".
A série é baseada na experiência pessoal de Keiji Nakazawa e a maioria das personagens e situações são reais ou inspiradas em experiências presenciadas ou mesmo vividas pelo autor. Tal como Gen, o protagonista da sua história, Nakazawa tinha sete anos quando rebentou a bomba atómica sobre Hiroshima, tendo apenas sobrevivido graças a um muro de cimento que o protegeu da explosão. Também ele perdeu o pai e dois irmãos no inferno nuclear e viu morrer a irmã de quatro meses, nascida logo após o bombardeamento, devido a má nutrição. Tendo conseguido sobreviver ao inferno que o rodeava, a sua principal preocupação, como o próprio refere, foi tentar esquecer os horrores da bomba atómica:
"Quando me tornei autor de manga, a última coisa que queria fazer era escrever sobre os horrores da bomba A. Odiava a simples menção da palavra. Acreditando que a BD deve ser divertida e fazer as pessoas felizes, dediquei a minha carreira a desenhar histórias de ficção científica e de baseball.
Mas, em Outubro de 1966 — vinte e um anos após a bomba —, a minha mãe morreu. Sofrendo de uma série de maleitas, a sua vida após a bomba tinha sido cheia de sofrimento. Quando o seu corpo foi cremado, descobri algo que me fez tremer de raiva: nada restou dos seus ossos! Normalmente os ossos resistem à cremação, mas a radioactividade do césio comeu os ossos da minha mãe, reduzindo-os a cinza. A bomba A roubou-me tudo, incluindo os preciosos ossos da minha mãe. A raiva fervia dentro de mim, e pela primeira vez confrontei a Bomba. Senti então a necessidade de escrever sobre a tragédia que nos atingiu a todos. Senti como se a minha mãe me dissesse para revelar ao mundo toda a verdade sobre a bomba que destruiu Hiroshima".
Convém esclarecer os leitores menos familiarizados com a cultura oriental, que o culto dos antepassados e dos seus restos mortais é um costume profundamente enraizado na tradição religiosa japonesa, sendo natural a existência nas casas de família de pequenos altares familiares onde se veneram os restos dos entes queridos, o que explica o choque e a revolta de Nakazawa, privado de qualquer vestígio da sua mãe. Por isso, Barefoot Gen, para além de um poderoso grito contra o esquecimento, é também um doloroso exercício catártico, única forma encontrada pelo autor para exorcizar o fantasma da sua família, cuja memória ao ser evocada nas páginas de Barefoot Gen encontrou finalmente a paz.
Ainda antes de Barefoot Gen, Nakazawa começa em 1968 a abordar o trágico acontecimento que marcou toda a sua vida, primeiro com duas histórias de estilo didáctico e meramente informativo, Kuroi Amé ni Utareté (Sob a Chuva Negra) e Aru Hi Totsuzen (Subitamente um Dia) e em seguida com Ore Wa Mita (Eu vi!), relato autobiográfico que em apenas quarenta e seis páginas condensa os acontecimentos mais tarde desenvolvidos nas nove centenas de páginas de Barefoot Gen.
Para desempenhar o papel de seu alter-ego na que seria a sua obra definitiva sobre os horrores de Hiroshima, Nakazawa escolheu o jovem Gen Nakaoka, cujo nome em japonês significa "raiz", ou "fonte". Nome com uma elevada carga simbólica, como o próprio autor explica: "Dei o nome de Gen ao meu personagem na esperança de que ele se torne uma raiz ou fonte de força para uma nova geração da humanidade — aquela que pisa descalça o martirizado solo de Hiroshima, sentindo a terra debaixo dos pés, com força para dizer não às armas nucleares... Eu próprio gostaria de viver com a força de Gen — é esse o meu ideal e vou continuar a persegui-lo através do meu trabalho."
O primeiro dos quatro volumes que compõem a série é dedicado essencialmente à caracterização do Japão durante a guerra. Retrato realista e sem maniqueísmo de uma época de carência e privações, em que o espírito militarista incentivado pelas autoridades japonesas e a fé cega na invencibilidade das tropas japonesas, guiadas pelo Imperador Deus, são duramente criticados.
Neste poderoso libelo anti-militarista, Nakazawa revela-se extremamente eficaz na descrição do histerismo bélico que invadia a população japonesa e que levou, uma vez consumada a derrota, ao suicídio colectivo de centenas de mulheres e crianças, que escolhiam essa "morte honrosa" em vez de se renderem aos "demónios americanos". Num ambiente de furor patriótico habitual em época de guerra, Gen e a sua família são segregados e discriminados, devido às posições pacifistas do seu pai. Hostilizado pelos colegas de escola, ignorado pelos vizinhos, Gen vê o seu pai ser preso e espancado, a irmã publicamente humilhada e a colheita da família destruída, tudo isto perante o olhar indiferente e muitas vezes hostil dos vizinhos, com excepção de Pak, um coreano também ele ostracizado devido à sua origem e que será o único a apoiar a família Nakaoka.
Perante este ambiente hostil e insustentável, Koji, o irmão mais velho de Gen, que não tinha a mínima vontade de morrer pelo Imperador, alista-se como voluntário na marinha, procurando assim evitar que a família fosse marginalizada por não querer participar ainda mais no esforço de guerra. Essa decisão de Koji, que lhe permitiu confrontar a dura realidade da guerra, representada por personagens como o piloto kamikaze que tenta desertar por não se sentir preparado para a sua missão suicida, muito provavelmente acabaria por lhe salvar a vida, pois de outro modo estaria em Hiroshima no fatídico dia 6 de Agosto de 1945, em que uma única bomba riscou a cidade do mapa, matando dezenas de milhar de pessoas e marcando para sempre a vida dos sobreviventes.  
A forma como o lançamento e a explosão da bomba atómica são contadas em apenas três das quase novecentas páginas que compõem esta saga semi-autobiográfica (muito longe do espectáculo pirotécnico do Akira de Otomo, onde uma única explosão chega a ocupar 15 páginas), alerta-nos para outro aspecto importante da obra de Nakazawa: a questão da manipulação do tempo, que se contrai ou dilata de uma forma perfeitamente articulada às necessidades narrativas, evitando a espectacularidade gratuita, mas sem abdicar dos efeitos dramáticos.
A passagem dos dias é dada pelo sol nascente, um sol ardente e estilizado, símbolo ao mesmo tempo dos ciclos naturais da vida que se renovam, do deserto em que Hiroshima se tornou e da própria bandeira japonesa.
Claro que os leitores menos habituados à estética e aos mecanismos narrativos dos manga (como parece ser o caso de Harvey Pekar, a avaliar pelas observações que fez à série) sentirão alguma estranheza perante o desenho caricatural e quase disneyano de Nakazawa, claramente na linha do grafismo de Osamu Tezuka, o mestre incontestado da BD japonesa. Do mesmo modo, a forma exagerada como os personagens exprimem os seus sentimentos, desde a raiva e tristeza à alegria, estão dentro dos padrões habituais da BD japonesa, e tem a sua origem na mímica do teatro Kabuki, uma das influências reconhecidas dos manga.
Algo de semelhante sucede com a representação da violência doméstica, apresentada de um modo exagerado, mais próximo dos desenhos animados (uma simples estalada do pai projecta Gen contra a parede; de cada vez que um personagem leva um murro na cabeça, nasce-lhe imediatamente um galo de grandes dimensões, etc.) do que seria de esperar numa obra de grande intensidade dramática, inspirada em factos reais. Embora nos pareça bizarro, tudo isto é perfeitamente natural em termos da BD japonesa, onde o irrealismo das cenas de acção é algo extremamente comum, e onde a fronteira entre os diferentes géneros (humor, acção, terror, romance, drama, erotismo) não é tão rígida como no Ocidente.
Vencidas essas ténues barreiras culturais, o leitor descobre uma história notável e ao mesmo tempo terrível. Apesar do seu aspecto caricatural, o traço de Nakazawa consegue-nos transmitir perfeitamente a angústia de Gen ao ver os seus pais soterrados nos escombros; o sofrimento dos moribundos que arrastam as carnes derretidas pela bomba; o desespero daqueles que perderam tudo e para quem continuar vivo significa apenas o prolongar da agonia; a impotência dos que, tendo escapado aparentemente ilesos, vêem a radiação corroer-lhes o corpo; o comportamento mesquinho das pessoas, quando as necessidades básicas da sobrevivência se sobrepõem aos valores morais, como a caridade e amizade; o ridículo de um grupo de sobreviventes que apedreja o cadáver de um americano, como se isso lhes permitisse vingar a destruição das suas vidas... Enfim, todos os cambiantes de um quadro complexo, mas terrivelmente real, estão nesta história, bem reveladora da capacidade da BD para transmitir de forma compreensível toda a dimensão de uma tragédia impensável, mas que não pode ser esquecida.
Contudo, no meio de todo o sofrimento e dor, onde surgem os inevitáveis abutres, dispostos a ganhar dinheiro com o mercado negro e o contrabando de víveres, ainda há espaço para a esperança, simbolizada por Gen. É ele que evita o suicídio de uma jovem bailarina, desfigurada pelas queimaduras provocadas pela radiação, do mesmo modo que é também graças a Gen que Seiji, um jovem pintor a quem a explosão mutilou e desfigurou (o que permite a Nakazawa abordar o problema dos mutilados e inválidos, quase marginalizados pelas famílias para quem a sua presença é uma lembrança constante de acontecimentos que querem a todo o custo esquecer) acabará por encontrar forças para voltar a pintar, agora com a boca, pois as mãos estavam inutilizadas, arranjando assim uma forte motivação para se manter vivo.
E a história termina com um gesto pleno de simbolismo, através do qual Gen exorciza o espectro de horror e destruição da bomba atómica: a plantação de sementes na terra calcinada do que antes tinha sido a sua casa. Para que do solo martirizado de Hiroshima a vida volte a nascer!
Publicado originalmente no fanzine Nemo nº 28, de Dezembro de 1997

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