segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Novela Gráfica 14 - A Asa Quebrada

Para este volume, além do texto para o Público, realizei também uma entrevista com António Altarriba para o Ípsilon. Entrevista essa que, por questões de espaço, teve de ser bastante editada. Por isso, e ao contrário do habitual, em que essas entrevistas aparecem apenas em imagem no blog, o texto integral da entrevista pode ser lido logo a seguir ao texto de apresentação do livro. 

A FORÇA TRANQUILA DE UMA MÃE CORAGEM

Novela Gráfica II – Vol. 14
A Asa Quebrada
15 de Setembro
Argumento – António Altarriba
Desenho – Kim
Por + 9,90€
Depois de A Arte de Voar, na série I, galardoada com o Prémio de Excelência para a Melhor Banda Desenhada Estrangeira na Comic Con 2016, Altarriba e Kim regressam à colecção Novela Gráfica, com A Asa Quebrada, narrativa centrada na vida da mãe de Altarriba, que chega a Portugal quase em simultâneo com a sua publicação original.
Segunda parte de um díptico iniciado com A Arte de Voar, que narra a vida de Antonio Altarriba Lope, nascido em 1910, em Peñaflor, numa aldeia perto de Saragoça, com base nas memórias que o pai do autor deixou escritas, A Asa Quebrada, em que Altarriba continua a contar com o traço detalhado e expressivo de Kim para dar vida à história, começa também com a morte da protagonista, que dá início a um longo flashback que ocupa o resto do livro.
Também o título, que remete para a impossibilidade de voar, funciona como reflexo e complemento do livro anterior, com quem cria uma ligação circular, apresentando outra perspectiva da realidade da Espanha franquista, através da vida trágica de Petra, a mãe de Altarriba. Uma mulher discreta, profundamente católica, que viveu as maiores agruras às mãos dos homens que a rodeavam, começando pelo próprio pai, que a quis matar à nascença, culpando-a pela morte da mãe, que morreu a dar à luz e que a marcou fisicamente, deixando-lhe um braço paralisado, deficiência que ela conseguiu esconder durante toda a vida, até do próprio marido e filho.
Num país profundamente machista, a vida de Petra é marcada pelos homens que cruzaram o seu caminho, o que se reflecte na própria estrutura do livro, com cada capítulo dedicado a um desses “homens da sua vida”, começando por Damián, o pai que a mutilou e terminando em Emílio, o seu colega do lar, com quem viveu um amor outonal, capaz de resistir às regras do lar e ao peso da culpa inculcada pela moral católica.
Em A Arte de Voar, a história de um homem que atravessou os momentos mais marcantes do século XX espanhol, com destaque para a Guerra Civil e para a 2ª Guerra Mundial, tinha uma força tal que eclipsava tudo o resto, o que fez com que o protagonismo de Petra, a sua mulher fosse bastante limitado.
Uma lacuna inconsciente da parte de António Altarriba, que este livro vem corrigir, dando voz a uma mulher que toda a vida sofreu em silêncio, mas que, fazendo das fraquezas, forças, soube construir o seu próprio caminho, tão ou mais importante do que o marido. Ou, como refere o autor no posfácio do livro que chega às bancas na próxima quinta-feira: “de maneira menos espectacular do que o meu pai, a minha mãe soube bater-se para preservar o seu espaço próprio, a sua parcela, senão de liberdade, pelo menos de realização pessoal. E isso, apesar do mais difícil dos começos, das figuras de autoridade que balizaram a sua existência. Soube superar o seu handicap a ponto de ele passar despercebido. Contra tudo e contra todos, conseguiu ser razoavelmente feliz. Não sonhava com grandes voos, nem em cruzar os céus como o meu pai. De forma mais modesta, com a sua asa quebrada, saltitou de ramo em ramo. Talvez assim, até tenha conseguido chegar ainda mais longe.”

ENTREVISTA COM ANTÓNIO ALTARRIBA

João Miguel Lameiras - Neste último ano, três livros teus (A Arte de Voar, Eu, Assassino e A Asa Quebrada) foram publicados em Portugal. Queres apresentá-los rapidamente aos leitores portugueses?

António Altarriba - Aparecem concentrados em Portugal, mas formam parte de um ciclo criativo maior. Comecei a escrever A Arte de Voar em 2004 e terminei A Asa Quebrada em princípios de 2016. Tudo começou com o suicídio do meu pai em 2001. Um facto que me marcou pessoalmente, reorientou-me narrativamente e como autor. Quis dar vida ao meu pai e foi ele quem me deu uma nova vida. Com Eu, Assassino pretendia afastar-me de um relato que me deixou emocionalmente de rastos. Procurei uma ficção, um policial negro, mas mesmo sem querer, a autobiografia introduziu-se no argumento (deixo ao leitor adivinhar qual é a parte real e qual a inventada).
  
JML - Como surgiu a ideia de A Asa Quebrada?

AA - A Asa Quebrada surge de um processo de reflexão, em certa medida de um remorso. Na Arte de Voar tinha sido injusto com a figura da minha mãe. É verdade que o protagonista era o meu pai e isso justificava que ela ficasse em segundo plano. Tratei-a de uma forma esquemática, unicamente identificada com a sua devoção religiosa. Sem querer, fiz dela uma espécie de contraponto conservador do meu pai. Mas a minha mãe era bem mais do que isso. Também teve uma vida muito dura e deu provas de grande coragem. A minha mãe pertence a uma geração de mulheres que viveu tempos de guerra e forme, que trataram das famílias, que foram invisíveis social e politicamente, muitas vezes  maltratadas

JML - A Arte de Voar e A Asa Quebrada funcionam um pouco como um espelho, mostrando os dois lados da Espanha do século XX, que se completam. Essa complementaridade dos dois livros foi intencional?

AA - Não. A Arte de Voar surge como um desabafo para superar a morte do meu pai. Nessa altura não pensava vir a contar a história da minha mãe. Mais do que isso, pensava que a minha mãe não tinha história. Conhecia a tragédia do seu nascimento e muitas das suas vicissitudes, mas não me parecia nada importante. Seguramente porque ela própria não lhe dava importância. Mas antes de terminar o argumento não tinha consciência da complementaridade das duas trajectórias. Cada um dos meus padres esteve vinculado a uma dessas duas Espanhas que, ainda hoje, nos gelam o coração. Mas a complementaridade más importante é a que se estabelece entre um homem e una mulher que, de maneira muito diversa, viveram a mesma época.

JML - Considerando o carácter mais discreto da tua mãe, foi muito difícil reconstituir a sua vida?

AA - Sim, mais difícil que a do meu pai. Ele era o rebelde e o que, em princípio, teria mais para esconder. No entanto, sabia muito menos sobre a minha mãe. Investiguei e até recorri a “reconstituições verosímeis” de certos episódios, porque conhecia os factos, mas não como ocorreram. Por isso, ao fim de contas, mais do que recordar a minha mãe acabei por redescobri-la. Agora conheço-a melhor. Também gosto mais dela.  

JML - Enquanto argumentista, quais foram as principais diferenças de trabalhar com Kim e com Keko?

AA - As diferenças são prévias à escrita do guião e têm a ver com o tipo de história que quero contar. O estilo de cada desenhador adequa-se melhor a certas temáticas ou a certas histórias. Não consigo imaginar Kim a desenhar Eu, Assassino nem a Keko a desenhar A Arte de Voar. Por isso, um argumentista deve conhecer as possibilidades dos ilustradores antes de propor a sua história a um ou ao outro. Uma vez escolhido o desenhador, trabalho de maneira igual com todos. Faço guiões muito detalhados, com a descrição de tudo o que aparece em cada vinheta, com propostas de enquadramento e iluminação. Na BD, estes aspectos visuais são parte decisiva da narração.

Textos publicados originalmente no jornal Público de 09/09/2016 e no Ípsilon de 16/09/2016.

2 comentários:

pedro ferreira disse...

Apetecia mais entrevista. Duas bandas desenhadas fantásticas.

JML disse...

Com o espaço disponiblizado pelo ípsilon (uma coluna) era difícil... Mesmo assim, foi preciso fazer cortes na versão impressa.