sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Lucky Luke de Mathieu Bonhomme em destaque na revista do Clube Tex Portugal

Para fechar este ano que amanhã termina, deixo-vos com o texto que escrevi sobre a excelente homenagem feita por Mathieu Bonhomme a Morris e ao seu Lucky Luke, por acasião dos 70 anos da série. Um texto que, embora prevista para sair no nº 4 da dita revista, acabaria por só sair neste nº 5, por uma questão de espaço. O que permitiu que o meu texto tivesse a companhia de um excelente artigo de Jorge Magalhães sobre Lucky Luke em Portugal, formando os nossos dois textos um mini-dossier sobre os 70 anos do cowboy que dispara mais rápido do que a própria sombra.
Resta-me desejar um Excelente Ano de 2017 aos leitores deste blog. Eu prometo regressar logo na primeira semana de Janeiro, com a primeira parte dqa já habitual lista das 10 Melhores BDs que li no ano que findou. Até lá, boas entradas em 2017!


O HOMEM QUE MATOU LUCKY LUKE, 
OU O WESTERN SEGUNDO MATHIEU BONHOMME

O mais popular cowboy da BD europeia, Lucky Luke, comemora em 2016 setenta anos de aventuras, sendo por isso dois anos mais velho do que o “nosso” Tex, que Gian Luigi Bonelli e Aurelio Gallepini criaram em 1948.
Criado por Maurice de Bevére, mais conhecido por Morris, o cowboy que dispara mais rápido do que a própria sombra, fez a sua estreia a 7 de Dezembro de 1946 no almanaque da revista Spirou, com a história Arizona 1880. Uma primeira história em que ainda é bem visível a influência da animação dos Estúdios Disney, mas o traço de Morris rapidamente ganhou outra personalidade e sofisticação, que se estendeu também aos argumentos, sobretudo no período áureo, de pouco mais de 20 anos, em que René Goscinny, um dos criadores de Astérix, se ocupou também do argumento de Lucky Luke.
A morte de Goscinny, em 1997, pôs fim a essa fase incontornável e, embora Morris continuasse a desenhar a série até à sua morte, em 2001, os argumentistas que com ele colaboraram, fracassaram claramente na espinhosa tarefa de fazer esquecer Goscinny…
O desaparecimento de Morris, não significou o fim do seu pobre cowboy solitário, com as aventuras de Lucky Luke a continuarem a sair com regularidade, com Achdé a assegurar o desenho de forma competente e extremamente fiel ao traço de Morris e o argumento a ser entregue a escritores como Laurent Guerra, Daniel Pennac e Tonino Benacquista, com créditos firmados em outras áreas, da televisão à literatura. Escritores que, sem deslumbrar, vieram ainda assim dar outro folego à série, mas sem nunca se afastarem da matriz de Morris.
Finalmente, aproveitando os setenta anos do herói, a Editora Lucky Comics, decidiu seguir o exemplo da Dupuis, com a série Spirou e dar carta-branca aos autores para criarem um Lucky Luke à sua imagem, à semelhança do que fez por exemplo Emile Bravo com o Spirou, no magnífico Journal D’un Ingenú, da série Spirou vu par…. É assim que vai nascer L’Homme qui Tua Lucky Luke, o livro que motiva este texto e que assinala o regresso de Mathieu Bonhomme ao Western, depois de Texas Cowboys, ao lado de Lewis Trondheim.
Nascido em Paris, em 1973, no seio de uma família ligada às artes, Bonhomme formou-se em Artes Aplicadas e iniciou-se na BD como assistente de Christian Rossi, o extraordinário ilustrador que substitui Jean Moebius Giraud como desenhador da série Jim Cutlass, o “outro” western a que o desenhador do Tenente Blueberry esteve ligado.
Grande fã do Western, Bonhomme logo no início da sua carreira abordou o género através das ilustrações que fez para o livro Contes et Recits de la Conquête de l’Ouest, editado pela Nathan em 2001, mas os seus trabalhos em BD, desde L’Age de la Raison, que lhe valeu o prémio do melhor primeiro álbum, no Festival de Angoulême de 2003, até às séries Marquis d’Anaon, Le Voyage d’Esteban e Messire Guillaume, que lhe valeu outro prémio de Angoulême, em 2010, abordavam outras épocas e outros temas, embora a aventura, mais adulta em Le Marquis D’Anaon e mais juvenil em Esteban, esteja sempre presente.
A ideia de escrever e desenhar uma aventura de Lucky Luke, não nasceu com esta oportunidade do aniversário, pois o autor é o primeiro a afirmar que “há mais de dez anos que pedia às edições Dupuis que me dessem uma oportunidade de o fazer. (…) quando fiz a enésima tentativa, não sabia que eles já estavam a reflectir na preparação dos 70 anos do personagem em 2016. Quando me apercebi que estavam receptivos à ideia, não esperei mais e mandei-lhes um dossier que acabou por os convencer. Só faltava formalizar tudo e escrever um argumento sólido e… que agradasse à editora.”
Para a disponibilidade demonstrada pela Dupuis, contribuiu, e muito, as provas já dadas no género por Bomhomme na série Texas Cowboys, criada a meias com Lewis Throndeim, a pedido do próprio Bonhomme, que queria que o prolífico argumentista lhe escrevesse um Western. Pré-publicada em capítulos na revista Spirou, como um suplemento destacável, Texas Cowboys recria a estrutura da Dime Novels, os romances de cordel que recontavam a história do Oeste, de uma forma bastante romanceada, em que a lenda se sobrepõe à História. O protagonista principal, Harvey Drinkwater, é precisamente um jornalista de Nova Iorque que vai para Forth Worth, no Texas, em busca de histórias sobre o Oeste Selvagem e que, mais do se limitar a contar as aventuras dos outros, prefere viver também ele essas aventuras, ou lado de lendas do Oeste como Sam Bass, Wyatt Earp, ou Bat Masterson.
Uma mistura entre história e lenda que encontramos também nas aventuras de Lucky Luke, personagem de ficção que se cruza frequentemente nas suas aventuras com figuras com existência real, como o Juiz Roy Bean, Jesse James, Calamity Jane, ou Billy The Kid e que, Bonhomme, a solo desta vez, aqui reinventa, de forma simultaneamente respeitosa e inovadora.
Esse respeito pela história e pela lenda (que muitas vezes se confundem) do Oeste é um elemento fundamental do trabalho de Bonhomme que refere: “queria verdadeiramente fazer um Western clássico. Queria que o Lucky Luke fosse um verdadeiro cowboy, pois ao longo do tempo, o humor tornou-se dominante na série”.
Também em termos gráficos, o trabalho de Bonhomme está mais próximo do realismo estilizado habitual nos seus trabalhos, do que do estilo mais caricatural de Morris. Como o próprio reconhece, “limitei-me a arredondar as formas do meu desenho para estar num registo mais semi-realista. Não estou muito longe do que fiz na série Esteban. Aliás, a cara de Esteban está bastante próxima da do meu Lucky Luke.”
Mas isso não o impediu de respeitar o passado de Lucky Luke, arranjando até uma explicação bastante engenhosa para o facto de o cowboy ter deixado de repente de fumar na BD, uma decisão motivada pelas exigências dos produtores de uma série de animação de Lucky Luke, de modo aos desenhos animados poderem passar na televisão americana, mas que valeu a Morris um prémio da Organização Mundial de Saúde, em 1988.
Talvez o aspecto em que Bonhomme tenha sido mais fiel ao trabalho de Morris, seja na utilização da cor. Uma cor mais narrativa e impressionista do que naturalista, que opta pela aplicação de manchas de cores planas, como o vermelho, castanho, ou azul, para destacar certos elementos e que ajuda a guiar o olhar do leitor através de uma cena, o que se revela particularmente eficaz nas cenas de multidão. Assim, o mesmo personagem pode aparecer inteiramente colorido a vermelho, amarelo, ou azul, na mesma página, ou todos os personagens podem aparecer coloridos num registo monocromático, que não tem qualquer relação óbvia com a cor dominante do cenário.
A ideia inicial de Bonhomme para a sua história, passava por revisitar o mito de OK Corral, mas dessa primeira versão apenas restou a personagem de Doc Wednesday, claramente inspirada na figura real de Doc Holliday, optando Bonhomme por contar uma história em que Lucky Luke é contratado pela população de Froggy Town para investigar o assalto a uma diligência feito por um índio e acaba por se confrontar com os diversos membros da família que domina essa cidade.
Uma história que começa precisamente com Lucky Luke abatido pelas costas no meio da enlameada rua principal de Froggy Town, com o leitor a descobrir, através do longo flash-back que se segue, o que realmente aconteceu desde a chegada de Lucky Luke à cidade, numa noite de tempestade.
Uma cena perfeitamente coreografada, que evoca no leitor a parte final do filme Imperdoável, de e com Clint Eastwood. Referência que está igualmente presente na imagem da capa do livro, em que o poncho que Lucky Luke usa não pode deixar de evocar o inconfundível vestuário do homem sem nome que Eastwood interpretou na trilogia dos dólares de Sergio Leone, cineasta a quem Bonhomme vai também recorrer na planificação do principal duelo da história, onde não faltam os grandes planos serrados dos olhos dos homens que estão prestes a bater-se e a alternância campo/contracampo. Elementos narrativos que Leone usava como ninguém e que acentuam o dramatismo dos momentos que precedem o duelo. Mas Eastwood e Leone não são as únicas referências cinematográficas presentes neste livro, que vai beber também a O Homem que Matou Liberty Valance, de John Ford, em termos de argumento.
Tão devedor da BD como do cinema, L'Homme qui Tua Lucky Luke, mais do que uma bela homenagem a Morris e ao seu Lucky Luke e uma maneira perfeita de comemorar os setenta anos do cowboy que dispara mais rápido do que a própria sombra, que também é, revela-se um excelente Western de papel, na linha dos grandes clássicos cinematográficos do género, que Bonhomme na sua juventude, devorou nas salas de cinema.
Texto publicado originalmente no nº 5 da revista do Clube Tex Portugal, em Dezembro de 2016 

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